No país do agro, um progressista poderia me montar num rodeio
Como o recente auê literário me lembrou o InterUnesp 2010 - e sobre ele tenho algumas palavritas
Minha mãe era professora de educação física, o que me rendeu já na escola: 1) força física, 2) aptidão em quase todos os esportes e 3) vergonha de existir em meu corpo. Desde muito nova, eu sabia o que era um corpo magro e atlético e que eu estava longe de possuí-lo, ainda que minhas tardes fossem mais recheadas de treinos de vôlei, abdominais e grand pliés do que de desenhos animados.
O medo de ser a última escolhida na hora de tirar time eu não tinha, mas em quase toda festa junina eu dançava com uma menina (a sapatão aqui agradece). E eu nunca subia num touro mecânico.
Ver alguém cair da máquina era a graça da brincadeira, ver uma pessoa gorda cair era ainda melhor. Uma existência gorda por si só já era motivo de zoação, isso eu não preciso contar para vocês. Por mais que meu interno de coxas tivesse mais músculos do que qualquer outro jovem ali, uma hora eu cairia. E eu não aguentaria as risadas que viriam junto.
Em 2010, a Unesp Araraquara sediaria os jogos anuais, aka InterUnesp. Nessa época, eu já tinha trocado a bola pelo copo e jogos eram motivo para gritar que a USP não tinha InterUnesp, estar chapada, dançar e beijar pessoas desconhecidas de manhã, tarde e noite, durante vários dias sem aulas. Era o paraíso universitário (por mais crítica que eu seja a ele).
Eu morava em Araraquara, numa república cheia de mulheres pelas quais tenho muito carinho. Nosso hino e grito de guerra era - e ainda é, pois a república segue viva - “na Krakatoa só tem gostosa!”. Lá me ensinaram que gostosa é estado de espírito.
Sediar os jogos significava ter um pouco mais de conforto na semana-do-saco-cheia-adulta, como dormir na própria cama, comer em mesa e tomar banho em um box que não empoçava. Você imagina a alegria. Até que no último dia chegou a notícia de que estava acontecendo um rodeio nas festas.
Os alunos da Unesp Jaboticabal, um campi agro, frequentavam os jogos munidos de cordas de laçar boi. Eles já faziam um tipo de rodeio, laçando mulheres bonitas. Por mais horrível que seja, na época isso era cool. Olha como você é atraente! E em 2010, talvez também querendo brincar de peão, alguns alunos da Unesp Assis decidiram deixar o laço e montar em mulheres gordas. Corrijo, gordas, sem “mulher” na frente.

Se já é difícil existir enquanto mulher, uma mulher gorda precisa brigar para ter alguma dignidade. Para ter um nome. Inclusive, a mal descrição de personagens gordas e o modo bestializado como foram retratadas me fez parar de ler a viciante trilogia da Rachel Cusk. E doeu, ela escreve bem.
A bestialização é um recurso discriminatório que reduz pessoas a sub-humanas. Isso acontece também com pessoas negras. É pior com mulheres negras e gordas. Descanse em paz e longe daqui, Saartjie Baartman. A jornalista
discute muito essas questões em suas colunas no Estado de Minas, recomendo Aquela porca gorda.Mas ali em 2010, os jogos em Araraquara, longe de qualquer discussão política, acabaram para algumas gostosas da minha república. Muitas eram gordas, entre pequenas e maiores, e não fomos montadas… pela sorte de não termos passado ao lado dos cowboys? Caso contrário, teriam feito uma roda ao nosso redor e berrado até os 8 segundos acabarem.
Descobri então que havia algo pior do que montar um touro mecânico. Podíamos ser o touro, o boi, o bicho em que subiriam em cima.
O clima desse Interunesp passou de festa a funeral. O processo do Ministério Público contra os 66 alunos do findado grupo do Orkut demorou anos, a Unesp temporariamente suspendeu alguns deles e foi posteriormente cobrada de maior rigidez. Até pouco tempo, o criador do rodeio devia a indenização sentenciada. O caso foi grave no circuito universitário paulista, mas parece que não tanto no intelectual.
Me entristece, mas não surpreende, uma situação exposta no último episódio da Rádio Novelo. Autores e editores de importantes publicações na cena literária e jornalística, quem eu sonhava ter como colegas, costumavam dar nota para mulheres e fizeram chacota ao rodeio em e-mails que trocavam. Parece que riram, pensaram em como reproduzir o rodeio. Como eles, os alunos da Unesp Assis logo seriam intelectuais e pensadores formados. Formadores de opinião. Todos da Faculdade de Ciências e Letras. Todos meninos progressistas. Da vida bandida. E, no fundo, do agro.
¡Viva la revolución! pero jamás la revolución de las mujeres.
Quinze anos depois do rodeio e com tanta coisa ainda a se aprender, eu me pergunto, é possível ensinar as mulheres a esquecer?1 E apagar o que aconteceu na escola, no trabalho, no relacionamento de inúmeros anos e no date de uma noite, no chão sujo de uma festa universitária ou no privado do Gmail, apagar o que irá acontecer amanhã ao pisar na rua.
É urgente esse ensinamento, porque, você sabe, eu espero, o agro é pop e nós, gordas, magras, gostosas, não somos os cowboys. Muito menos os fazendeiros.
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Acho um porre ainda ficar falando de homens isso, mulheres aquilo, mas eventualmente as pautas regridem. É preciso seguir o flow.
Ana, eu amei sei texto, fiquei honrada de ser citada nesse espaço.
Que bom que você falou sobre, porque sinto que foi a única pessoa que notou isso e também se incomodou. Obrigada
beijos
Perfeito, Ana. Esse trecho da Rachel Cusk tbm em incomodou demais, assim como outros de livros elogiados e contemporâneos (inclusive de mulheres). Tenho uma coleção deles (de trechos fotografados de livros interrompidos) e as vezes me perguntava se só eu me sentia incomodada. Ainda bem que não. O rodeio das gordas tbm me aterrorizou por aqui, assim como ouvir sobre ele no podcast reativou lembranças doloridas (mas não esquecidas). E também acho cansativo ter que repetir repetir repetir os mesmos assuntos, quando só queria paz. Ou novas polêmicas pra se posicinar. Mas o mundo parece continuar o mesmo, sempre. Exaustivamente.