Dois anos de namoro com a Fluoxetina e dois gatos depois
Me vi numa encruzilhada, escolher uma vida sem ansiedade ou uma vida sem desejo?
Recebi alta da psiquiatra. Quando comecei a me queixar demais do embotamento e relatar que eu preferia ficar abraçada com Dengo e Cosme do que trazer outro corpo humano para a cama, minha médica disse que a conduta seria retirar o medicamento, não adicionar outro. Uma esquecida crise de pânico cresceu no meu peito. Retirar?
Até começar a tomar, eu jamais pensei realmente precisar de ansiolítico. Ser acelerada era o meu jeitinho, dava para existir de outra forma? Sem planejar cada passo, analisar falas e sentir aperto no peito. A vida podia fluir, eu só precisava entender para onde.
Tive inúmeras conversas com a psicóloga e então quatro meses, três psicotrópicos e duas médicas depois, cheguei na Fluoxetina. E que relacionamento lindo tivemos.
Antes eu já havia tentado meditação, dieta aiurvédica, gotas da Weleda, retirar glúten, comprimidos de passiflora, lavanda no banho. Também já havia namorado a distância, não colocado rótulo em relacionamento de um ano, morado junto em 3 meses. Com a Fluoxetina, me senti bem como nunca. E tive minha relação mais estável.
Com ela, o bem-estar era frequente e, o principal, eu me sentia eu mesma. Que sensação incrível. Tentarei descrevê-la :
É como encontrar as chaves de casa que você pensava ter perdido no fundo da sua mochila. Como pedir seu prato preferido e identificar todos os sabores na primeira garfada. Como pedalar em uma bicicleta há muito esquecida e descobrir que você sabe guiar. É sentir que o céu carregado de nuvens se abre e revela que o sol… O sol sempre esteve ali.
Com ela, voltei a me exercitar frequentemente, a cozinhar e até negociei cachês melhores. Me equilibrei, parei de ter palpitação e cuidei de mim. Deixei de cuidar de algumas pessoas e entendi que gostaria e poderia cuidar de outros seres. Adotei dois nenéns felinos e viramos uma família feliz. Eu, Flu, Dengo e Cosme.
Deixei de sair um tanto, sabe como é a monogamia, cerca elétrica em volta da casa. Sexta à noite virou meu dia preferido para ir à musculação, deixei de ter dates e quase aniquilei minha vida social. Para escritores e artistas em geral, isso é quase aniquilar sua vida laboral também. Mas tudo certo, eu estava bem. Realmente bem. Até Fluoxetina e eu cairmos na monotonia.
Percebi que nenhuma sensação era profunda. Que a felicidade era uma brisa e o resultado de meses de trabalho era mais um evento comum, como ver meu curta “Bonita de rosto” ser premiado e estar indiferente. Eu também quase não chorava.
Todos os dias pareciam o mesmo e comecei a esquecer da Flu, quase num boicote da relação. Viajei e consciente-inconscientemente levei pouco dela. Testei ficar sem sua companhia por uns dias e reencontrei a libido1. Peguei trajetos que não sabia onde dariam, acordei sem saber o que seria do meu dia. Dancei, relembrei que gostava de sexo, me apaixonei, meu deus, vivi.
Percebi que precisava ressignificar algumas coisas. Conversei com a psiquiatra sobre os acontecidos e, depois de uma bronca, ela sugeriu a retirada. A solução era seguir só, mas eu não estava pronta para terminar, queria trabalhar minha relação. E nos meses seguintes a Flu me deixou ainda mais entorpecida e anestesiada. Eu não queria uma montanha-russa de emoções, e sim sentar no balanço.
É possível viver com seus gatos como relação mais próxima? Acredito que sim. Estou exagerando? Também. Com eles senti um preenchimento inimaginado, o fim de uma carência que me fazia querer maternar todas as minhas companheiras amorosas. Estava certa de que com as próximas seria diferente, mas a Flu me tirava o ímpeto de ir atrás.
Agora, escrevo esse texto desmedicada. Percebo que a Flu era o calço da minha mesa bamba e a barragem de inúmeras emoções. Choro vendo os abuelitos porto-riquenhos dançando ao som de Bad Bunny2, NuevaYol!, e me pego em reações exageradas no set de filmagem porque a produção ainda não trouxe uma prolonga. Vejo que antes tudo era um estado ansioso só e que hoje consigo diferenciar sentimentos. Há insegurança, apreensão, estresse e nervosismo nas tempestades do dia-a-dia.
Na minha última consulta e despedida formal da Flu, relatei que estava com medo, ansiosa por talvez sentir ansiedade. Entendi que meu jeitinho acelerado é traço de personalidade e o problema é o estado generalizado ansioso, a patologia é uma nuvem permanente. Tudo que não experimento há muitos meses.
Pode ser que eu retorne ao estado de dois anos, sim, e se isso acontecer, c’est la vie. Sei que posso contar com a Flu para uma troca sincera, como uma ex que virou uma grande amiga. E que ela estará ali, a uma prescrição de distância, na mesma dose e apresentação, para me ajudar a reconectar comigo mesma, parar de sentir e então, aos poucos, voltar.
Então, já que essa Substack se tornou uma carta, fica aqui minha gratidão. Obrigada por tudo, Flu, e (espero que não) até a próxima.
Não faça isso em casa. Sou farmacêutica de formação e assim foi uma cagada.
Completamente monotemática e obcecada pelo álbum “Debi tirar más fotos”. To vendo que vai tirar texto. Ouçam e vamos a un baile involvidable?
eu já li esse texto 3 vezes e tou completamente chocada com como cada palavra encaixou de forma surreal na minha experiência com a flu -- e com a vida... eu tou feliz de voltar a sentir, a escrever (!), a viver sendo mais eu, mesmo que isso me apavore na mesma medida. espero que seja um reencontro bonito aí também, amiga.
Viva a existência dos remédios como recurso, e viva a vida orgânica sem ela também! te encontro na pista tocando Bad Bunny!