“Vínculos independem da felicidade ou da liberdade, se formam em qualquer terreno que aconteça o passar do tempo. O abuso mora neste dilema”. Assim, a autora Juliana Judice abre seu livro “Infértil desejo" e eu, além de concordar, reflito porque muitos vínculos se mantém, mesmo quando não há nada de bom brotando deles.
Desejo, Juliana diria. Foi isso que a sustentou na relação que a moveu a escrever esse livro - mediarei o lançamento sábado em São Paulo, inclusive. Eu também vivi uma relação abusiva e por anos me perguntei na terapia porque eu fiquei.
Dependência financeira, moradia, pressão social, filhos. O capitalismo/ patriarcado não facilita para que mulheres saiam de relações destrutivas. Mas e quando não há amarras concretas? Contrariando o senso comum, há mais prevalência de abuso em relações bissexuais e lésbicas do que em heterossexuais.
A pesquisadora Fabiana de Andrade estudou relações abusivas e dentre seus achados estão a similaridade das narrativas de violência, a impossibilidade de classificar essas mulheres e todas começarem essas relações acreditando estar vivendo um amor.
“o desejo, sim
desmonta solidões
sobrevive em queda livre
acredita em comoções
te promete a saída
do quarto escuro
da tua própria vida”
É de uma complexidade que ainda me buga a cabeça o estar numa relação amorosa sabendo, com todo seu corpo, que ela jamais poderia ser chamada assim.
Ninguém ingressa numa relação abusiva de forma consciente. No início há paixão e parceria, encanto, sentido, tudo que o amor romântico plantou em nós. A violência se dá de forma gradativa, sutil, e coexiste com o que havia de bom. E acho que falamos pouco disso.
Não há uma mudança de um estado para outro, eles coincidem, como numa montanha-russa, hora êxtase, hora medo. Hora “amor da minha vida”, café na cama, massagem nos pés e em seguida chantagem emocional, silenciamento, ameaça, desprezo. A descida na montanha-russa perde a adrenalina da viagem e ganha a instabilidade da oscilação entre afeto e hostilidade.
E acredito que a dificuldade, para além de toda devastação psicológica, e o pulo para se perdoar e então se libertar do que você viveu, é assumir que você quis isso. Ninguém te acorrentou.
Você escolheu ficar.
“O fato é que as pessoas decidem viver nas cercanias de um vulcão porque o solo que resulta dele é extraordinário, rico em nutrientes que provêm das cinzas. Nesse lugar perigoso suas frutas eram mais doces, suas plantações mais altas, suas flores mais radiantes, suas colheitas mais abundantes. A verdade é que não há lugar melhor para se viver do que à sombra de uma montanha bela e furiosa.”
Na casa dos sonhos, Carmem Maria Machado
Nesses anos de conversas com mulheres sobre suas relações — estou desenvolvendo um documentário sobre o tema, #obsessão — vejo que há muita culpabilização. Sei que há uma vítima e um abusador, os estudos nomeiam assim. Há alguém passivo e alguém ativo na dinâmica, mas ela não deixa de ser uma relação. Algo que só se mantém porque há duas pessoas ali.
Diferente da Juliana, eu não sentia desejo. Desejo sexual. Sentia desejo de amor, de amar e fazer uma relação dar certo, de voltar para como era no início, de tentar consertar, conversar e até controlar as reações da outra para manter tudo só no modo bom.
O conserto desse tipo de dinâmica é a saída. É desistir e matar a relação. “Matar até onde já se morreu”, como escreve a Juliana. E talvez doa, e machuque mais ainda no processo, porque é preciso matar um tanto de você. É preciso matar a parte de você que só existe dentro dessa relação. A parte que foi imensamente triste, e também imensamente feliz.
“matar-se
requer
coragem”
Tanto eu, quanto a Juliana Judice, vivemos relações abusivas com mulheres. Há dificuldade da comunidade em falar sobre esse tema, principalmente por medo de reforçar estereótipos negativos que já existem.
Sábado vamos aprofundar a discussão na Livraria Simples, às 19h. Junto do lançamento, rola o Bate-papo: amor sáfico, traumas e abusos. Vamos? Os trechos destacados na substack são de poemas dela :)
Falar sobre isso requer coragem, obrigada Ana!